Da caçamba de uma caminhonete 4x4, no meio do acampamento de Ñacunday, o líder sem terra paraguaio, Victoriano Lopez Cardoso, dá a ordem. Embora garanta que não terá ocupação na próxima semana, diz que ninguém ali vai retroceder um passo sequer na luta pela reforma agrária no Paraguai, e que a polícia vai ter trabalho se decidir cumprir as ordens de reintegração de posse para expulsar integrantes do movimento que ocupam pequenas propriedades de brasileiros.
Cercando o veículo usado como planque, mais de 500 homens gritavam no idioma guarani, batiam os facões, arrancavam galhos de árvore e concordavam prontamente com o chefe do grupo. Exaltados, pediram para os jornalistas deixarem o local. Antes, Lopez reafirmou:- Retroceder, jamais. Quem tem que deixar essas terras são os brasileiros, que as usurparam. Não queremos violência, mas não vamos abrir mão do direito que é nosso: solo paraguaio é dos paraguaios. Os brasileiros estão aqui com títulos falsos. Vamos esperar mais uma semana, depois avaliamos - disse ele, no início da noite de sábado, reiterando o discurso que se repete há anos.
A Justiça determinou na sexta-feira que os sem-terra deixem esses terrenos nos próximos dias. Neste domingo, o ministro do Interior, Carlos Filizzola, disse que os sem-terra “não podem ser tratados como animais”, mas que a polícia deve fazer seu trabalho. Com o clima esquentando, o presidente paraguaio Fernando Lugo reúne nesta segunda-feira, em Assunção, autoridades para tentar contornar o problema. Em Ñacunday, o centro da disputa são 167 mil hectares de terra pública explorados por brasileiros, e que os sem-terra querem assumir, com argumento de que uma lei não autoriza a exploração de áreas públicas por estrangeiros.
Com a promessa de empenho por parte de Lugo, o discurso dos manifestantes mais uma vez arrefeceu. No fim da tarde, por telefone, uma das novas lideranças do movimento, Frederico Ayala, informou que as negociações devem se estender nas próximas semanas. Neste domingo, o policiamento não foi reforçado na região, e apenas dois homens permaneciam à sombra de uma árvore, distraindo-se ao celular.
- Agora há uma promessa de alguém do governo vir aqui para conversar com a gente. Vamos esperar - disse ele, que vive há pouco mais de dez anos na colônia de Paranambú, onde fica o assentamento. Assim como ele, cerca de 10 mil pessoas permanecem na área invadida há 13 anos. Muitas famílias começaram a chegar nos últimos dias, por conta de uma possível remarcação das áreas.
Sob o sol forte, os integrantes do movimento passaram o domingo dentro das barracas. Poucos perambulavam pelas trilhas. Nem mesmo um grupo de homens que durante toda a semana esculpia foices com pedaços de árvores deu as caras nas ruas. O maior movimento era o de crianças, muitas delas nuas, brincando em pequenos riachos visivelmente poluídos.
A área pertence ao brasileiro Tranquilo Fávero, inimigo número um dos sem-terra de Ñacunday. No total, a fazenda tem 530 mil hectares, e 167 mil deles estariam em área pública. É esse terreno que os paraguaios querem retomar. No início da semana, Favero falou ao GLOBO. Chamou os sem-terra de baderneiros, e garantiu que havia investido US$ 50 milhões nos 40 anos em que está no Paraguai. Em 1990, naturalizou-se paraguaio. Hoje, aos 74 anos, acaba de construir um mausoléu na região de Torocuá, onde administra o porto particular em que escoa toneladas de soja. Já afirmou que pretende que toda a sua família seja sepultada em solo paraguaio.
Fonte: O Globo